17 de jul. de 2009

I Q U E

Riscos, rabiscos, pincéis, tintas, textos, massa, barro...
matéria-prima que constrói, dá a cor, cria a imagem
desse carioca de 47 anos que escolheu a arte como
parceira de vida, e vive um longo e feliz casamento.

Jornalista, cartunista, escultor e roteirista. Chargista do Jornal do Brasil há mais de duas décadas. Autor roteirista da TV Globo, atualmente escreve o programa Zorra Total. Dois livros publicados. Dois prêmios Esso de Jornalismo. Duas esculturas suas no Rio de Janeiro. Ique é isso tudo e também o seu vizinho, morador da Península, espaço cercado pelo verde, que serve de inspiração, refúgio, porto seguro.

Revista Península: Ique, vamos começar pelo princípio, na verdade, pelo nascimento. Nome de Batismo?
IQUE: Victor Henrique Woitschach. Eu nasci em Campo Grande, MS e saí de lá rumo ao Rio de Janeiro aos 20 anos.


Revista Península: E como surgiu o apelido?
IQUE: Esse era meu apelido de infância. Quando comecei, aos quinze anos, no jornal Diário da Serra, em Campo Grande, eu assinava com meu primeiro nome. Mas como era o final da ditadura, e no interior do país a repressão ainda era muito forte, sem contar com o coronelismo regional, que não admitia que nenhum tipo de crítica ou irreverência questionasse seus mandos e desmandos, eu tive que usar um pseudônimo que dificultasse meu reconhecimento. Na verdade, aos 19 anos eu fiz concurso e me tornei funcionário público estadual, fazendo as charges da primeira página do jornal de maior oposição na região. Qualquer associação do chargista ao funcionário da secretaria de educação seria fatal. Pelo bem da verdade, não adiantou muito, mas pelo menos me deu um pseudônimo que funcionou como nome artístico e é de fácil lembrança.

Revista Península: Conta pra gente como você descobriu essa veia artística, como foi o início da sua carreira, quais os grandes incentivadores?
IQUE: Eu nunca me imaginei fazendo outra coisa na vida. Desde criança, desenhava muito e me dedicava tecnicamente ao desenho. Tratava aquilo como algo muito sério. Sofri críticas da família, muito conservadora, e só recebi incentivo dos estranhos. Professores me presenteavam com livros, revistas e com oportunidades pra desenvolver minha arte. Minha inspiração maior era um americano chamado David Levine, que revolucionou o traço no mundo quando usou a “hachura” para enriquecer os desenhos num momento em que a impressão de jornais e revistas não ofereciam recursos de meio tom, luz e sombra.
Chegando ao Rio de Janeiro, trabalhei na DEMUZA quando os trapalhões se separaram e iniciaram carreira solo. Com Dedé, Mussum e Zacarias, fiz meu primeiro trabalho de peso para um filme: “Atrapalhando a Suate”. Quando finalmente cheguei à grande imprensa, mais precisamente no Jornal do Brasil, tive no cartunista Lan a figura do mentor. Mais do que um pai pra mim, naquele momento, ele teve a sensibilidade de reconhecer em mim o jovem talento que chegava na redação e que não podia ser desperdiçado. Com isso, me abriu todas as portas possíveis e imagináveis. Devo muito ao meu mestre LAN.

Revista Península: Você acredita que, de modo geral, a crise política e financeira, os grandes escândalos pelo Brasil afora, a corrupção desenfreada, tudo isso é fonte inesgotável de piadas para os humoristas?
IQUE: Infelizmente é. Mas disso jamais nos livraremos por sermos humanos e convivermos em sociedade. Uma sociedade cada vez mais adoecida e sem referencial ético. O papel do humorista gráfico, de imprensa é muito importante. Na verdade somos jornalistas que desenham, que fazem suas crônicas diárias através de imagens.
Revista Península: O mensalão, dinheiro na cueca, os grandes escândalos do governo Lula renderam charges engraçadíssimas. Você mesmo criou várias. Fala de uma delas em especial?
IQUE: Mais do que charges engraçadas, elas estão sempre carregadas de muita crítica e de uma preocupação jornalística responsável. Nosso trabalho vai até onde a fotografia não pode ir. Temos a licença poética de poder criar, em desenhos, situações que correspondem à realidade, expondo, de maneira irreverente e contundente, as víceras do poder e suas mazelas, mas que carregam essa realidade de irreverência. Nós somos os instrumentos da voz popular. Nesta charge, em que eu coloco no chuveiro quase todos os membros do PT envolvidos no escândalo do mensalão, me permito usar uma pequena legenda como a cereja do bolo pra reforçar a situação delicada em que eles se encontram: Alguém tem que se sacrificar e pegar o sabonete, que é o mensalão, que caiu. A metáfora visual fala por si só.
Revista Península: Dois prêmios Esso de Jornalismo*, um reconhecimento ímpar pelo seu trabalho. Quais foram os trabalhos premiados e quando?
IQUE: Tive dois trabalhos premiados num momento muito importante de minha carreira, em 1990 e 1991. A charge política não era incluída no Prêmio por não ser considerada jornalismo, como a diagramação e o fotojornalismo. Eu ganhei os dois primeiros anos, e fim. A categoria acabou logo em seguida, me deixando como o único profissional do mercado a ter recebido tal honraria na história da imprensa brasileira. Os dois trabalhos foram sobre o governo Collor. Um no início, mostrando o filhinho de papai ganhando o palácio do Planalto de brinquedo no Natal, e a outra demonstrando todo o seu poder.



Revista Península: Dois livros de charges publicados. Fala um pouco sobre esses dois trabalhos.

IQUE: Os livros são duas coletâneas dos meus melhores momentos no governo Sarney e no governo FHC. O primeiro, intitulado “Brasileiras e Brasileiros”, com charges ainda em bico de pena, publicadas exclusivamente pelo Jornal do Brasil. O segundo já com trabalhos em cor, a lápis de cor e ecoline, publicados na primeira página do Estadão de S. Paulo. Esse livro teve uma tiragem recorde de 120.000 exemplares, pois foi solicitado pelo departamento de marketing da empresa pra ser o Brinde promocional pela renovação de assinaturas de toda a carteira do jornal. Sucesso inesperado.

Revista Península: É mais fácil ou apenas diferente criar charges hoje? A ilustração digital facilita muito o trabalho ou ainda é o talento que comanda o show?
IQUE: A criacão é e sempre será a mesma. Obviamente ela é quem orienta uma série de prioridades e escolhas, mas o talento, a técnica apurada, a sensibilidade artística sempre comandam o show. Obviamente que a ilustração digital, a pintura digital oferece uma facilidade incrível. Não poderia ser diferente. Se é uma tecnologia avançada, teria que trazer inovações e vantagens técnicas que o trabalho convencional não oferece. E a maior vantagem é a velocidade na execução dos trabalhos, na assepsia, na praticidade. Com um laptop na praia, em qualquer lugar desse nosso litoral fantástico, você pode fazer uma pintura digital, virtual riquíssima. Mas sem tecnicamente saber como se faz no papel, não adianta pegar o computador e achar que todas as ferramentas, filtros que simulam quase todas as situações reais, vão fazer o trabalho pra você. E pior, você vai ter que se readaptar ao comportamento do computador. O maior exemplo que dou é o do vídeo game que simula corridas de carro. Por melhor motorista que você seja, pilotando um simulador de corrida, você bate o tempo todo. O mesmo vai acontecer desenhando no computador. Pelo menos até você se adaptar ao “drive” da caneta virtual que se usa pra desenhar. Sem talento não dá.
A grande maioria dos trabalhos que tenho publicado em jornais, revistas, programações visuais, cenários e animações para TV e cinema, são virtuais. São criados e executados diretamente no computador, sem nenhuma participação do lápis e do papel.
Revista Península: Quem caminha por Ipanema e passa pelas ruas Visconde de Pirajá e Garcia d’Ávila esbarra com um trabalho seu que ganhou grande repercussão na mídia. A escultura do Corneteiro do Exército Luís Lopes, pivô de uma grande confusão na Batalha dos Pirajás, em 1822. Ao receber ordens para soar na corneta o toque de retirada, sabe- se lá por que emitiu o som de ataque. A tropa brasileira avançou, assustando o exército luso, que bateu em retirada. O corneteiro acabou sendo, sem querer, uma espécie de general do embate vencido na Bahia. Conta pra gente como foi desenvolver e criar essa peça?
IQUE: Foi uma encomenda direta do prefeito Cesar Maia. Ele conhecia a história irreverente do corneteiro atrapalhado, e me pediu que criasse uma charge tridimensional daquela história, como se a notícia da vitória do exército brasileiro em Pirajá tivesse acontecido naquele instante. Luiz Lopes o corneteiro, com um toque de corneta, enganou os rebeldes tocando “avançar degolando o inimigo”, enquanto estava encurralado com seus companheiros, à beira da morte. Pensando estarem cercados, os rebeldes bateram em retirada dando a vitória e consolidando definitivamente a independência de nosso país.

Revista Península: Este trabalho é um filho querido? Você sempre passa por lá para lamber a cria? E qual e a outra escultura que você tem no Rio de Janeiro?
IQUE: Visito sempre meu filho de bronze que mora ali em Ipanema. Faço a manutenção anual por minha conta pra que a peça esteja sempre reluzente, pra retribuir o carinho que recebe, não só dos cariocas, mas de todos os turistas que passam ali para visitar e interagir com ela.
Revista Península: E como é escrever o Zorra Total? Como é esse bastidor do humor brasileiro?
IQUE: Escrever o Zorra Total é um prazer, uma diversão acima de tudo. É pra mim uma conquista pessoal, de complemento profissional. É um exercício ao roteiro, que nesse caso, é pra televisão, mas que tem muita técnica semelhante a do cinema. Tenho um sonho de escrever um programa de televisão, um filme, e um longa de animação. E toda a experiência adquirida nesses mais de 30 anos de profissão tem contribuído muito pra queimar etapas e me dar muito prazer profissional.

Revista Península: Dois prêmios Esso. Dois livros publicados. Duas esculturas. TV, Jornal, revista, vários trabalhos. O que você deseja mais? Qual o sonho que ainda não realizou?
IQUE: Realmente a vida me deu muitas alternativas e acabei experimentando quase todas. Como chargista eu tenho um desejo claro de parar a qualquer momento. É um trabalho muito estressante, exaustivo, que exige atenção constante e já estou cansado da rotina desgastante da profissão. A televisão ainda me fascina muito e sei que tenho muitas coisas importantes a realizar. Isso me estimula e me dá energia pra continuar investindo nesta área. Mas o meu maior sonho para o futuro é poder me dedicar à pintura e a escultura como realização de artista, e como meio de vida, pretendo ter minha grife, onde os mais de 10.000 desenhos realizados durantes esses mais de 30 anos, pudessem ser aproveitados e consumidos como obras de arte, como moda, como objetos de decoração.
Se isso tudo acontecesse, eu poderia dedicar uma parte de meu tempo pra realizar uma obra social importante, passando toda a minha arte e técnica pra crianças que jamais teriam ou terão acesso a elas. Assim como acontece com as escolinhas de futebol, de tênis, de surf e outras. Além do desenho, pintura, escultura, artes digitais, design, escola, lazer, cultura e desenvolvimento emocional, disponibilizar minha arte para formar artistas completos com bagagem pra competir inclusive no mercado internacional.

Revista Península: Para concluir, o Ique por Ique?
IQUE: Eu sou muito simples. Amo minha família e meus amigos, consciente do que eles representam no meu equilíbrio emocional e profissional. Quero um mundo melhor para todos e acho que a verdade é absoluta e o caráter fundamental.

*O Prêmio Esso de Jornalismo é um programa institucional da Esso Brasileira de Petróleo que, desde 1955, promove o reconhecimento do mérito dos profissionais de imprensa através da indicação e da escolha dos melhores trabalhos publicados em jornais e revistas, segundo o julgamento de comissões independentes formadas exclusivamente por jornalistas e especialistas da área de Comunicação.