19 de jun. de 2009

AfroReggae

O som verde e amarelo
(revista 03 - jan.de 2009)
Por Tereza Dalmacio
Fotos JR Duran/Steff Langley/
Ierê Ferreira/Evandro João SIlva/
Rogério Santana


Como é bom olhar para o país e conhecer o Brasil que dá certo. Aquele B R A S I L forte, varonil, onde seus filhos não fogem à luta. Um Brasil que se faz e não espera acontecer. São vários exemplos espalhados pelo território nacional, gente que arregaçou as mangas e fez a diferença para comunidades inteiras. Gente que mobilizou o coletivo e transformou a realidade local. E um grande símbolo de transformação social é o Grupo Cultural AfroReggae.
Criado há 15 anos na Favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, foi buscar na arte a ferramenta de construção da cidadania de diversos jovens.Agora vamos conhecer este trabalho, sua origem, seus frutos, os caminhos trilhados, o sucesso alcançado. Vamos descobrir, juntos, a força de uma idéia, a trajetória de luta e de conquistas.

Gigante pela própria natureza
Assim podemos descrever José Júnior, coordenador executivo do AfroReggae, que tirou da adversidade energia para mudar, empreender e fazer diferente. O sujeito, que lá atrás, se indignou com a violência na porta de casa, que reagiu e nos mostrou que é possível transformar.

Revista Util: Júnior, em 1993 o Brasil assistiu, com perplexidade, à barbárie ocorrida em Vigário Geral, na qual policiais militares mataram 21 moradores, em represália ao assassinato de quatro PMs por traficantes. Conta pra gente como esse episódio transformou uma comunidade inteira e impulsionou tantas mudanças sociais?

José Júnior: No AfroReggae, nós acreditamos muito no efeito Shiva, Deus que precisa destruir para reconstruir. A chacina foi uma barbaridade e nós nos instalamos em Vigário, porque sentimos que precisávamos fazer alguma coisa ali. Não sabíamos o quê exatamente, era algo intuitivo e, ao mesmo tempo, urgente. O AfroReggae havia sido criado naquele ano, mas éramos um jornal – o AfroReggae Notícias – que destacava a cultura afro-brasileira. A tragédia nos levou para a favela e lá começamos as oficinas. Não era um esquema profissional como o que temos hoje. Aprendemos muito enquanto ensinávamos. Quando houve esse episódio, muitas instituições se instalaram em Vigário, mas o AfroReggae foi uma das poucas que por lá permaneceu. Não só ficamos lá, mas de lá criamos outros braços, outras pontes e outros trabalhos.

Revista Util: Da dor à esperança. Do trabalho à realização. Ainda neste início do projeto, o que você destacaria como fatores determinantes para tantas conquistas sociais e culturais?

José Júnior: A vontade e a crença foram as grandes alavancas de tudo. Vontade de mudar, de transformar. Em nenhum momento, por mais que o cenário fosse complexo (e tivemos muitas adversidades durante toda a nossa trajetória), deixamos de acreditar e querer. Não podemos esquecer nunca que tivemos pessoas-chaves que foram fundamentais para ajudar a projetar o AfroReggae e, conseqüentemente, contribuíram muito para nossas conquistas. A ida do Caetano Veloso e da Regina Casé, hoje nossos padrinhos, a Vigário, fez com que a imprensa, pela primeira vez, destacasse aquela favela numa matéria positiva, num caderno de cultura. Antes, Vigário só aparecia nas páginas policiais. Outra pessoa fundamental foi meu amigo e eterno guru, o poeta Wally Salomão. Ele me levava a festas repletas de artistas e formadores de opinião e dizia: "Como você não conhece o AfroReggae?", de uma forma tão indignada que era capaz de constranger o mais bem informado dos intelectuais. A partir daí, ele explicava o projeto com aquele entusiasmo que só ele tinha e, naturalmente, ampliava os horizontes do AfroReggae.“Nossos bosques têm mais vida...”Mais flores, mais esperança, sonhos e muitas outras conquistas. Hoje o projeto atende mais de 2 mil pessoas de diversas regiões, como Vigário Geral, Cantagalo, Parada de Luca e Morro do Alemão. Os jovens participam de oficinas, buscam programas ligados à arte, à cultura afro-brasileira e à educação. É valorização da vida.

Revista Util: Percussão, teatro, grafite, basquete de rua, dança...enfim, uma gama de atividades é oferecida aos jovens carentes dessas comunidades. Você diria que a arte tem vencido algumas batalhas contra as drogas? E você acredita que é possível ganhar essa guerra?

José Júnior: A arte venceu muitas batalhas contra as drogas e o AfroReggae está repleto de exemplos concretos desta guerra. Temos muitos ex- usuários e, principalmente, muitos ex-traficantes. Os agentes desta guerra mudaram de lado e, hoje, são agentes da paz. Mas o traficante da favela não é o grande responsável pelo tráfico de drogas. As indústrias mais lucrativas do mundo são as de drogas e de armas e não vejo uma solução rápida e simples para essa questão. O AfroReggae trabalha o coletivo , mas acho que nossos resultados são sólidos, porque damos muita atenção para o indivíduo, consideramos cada caso. O que é uma boa solução para um, pode não ser para o outro. E, trabalhando desta forma, você acaba conseguindo de fato alterar uma realidade.

Revista Util: Você é contra ou a favor da legalização das drogas e por quê?

José Júnior: Contra. Cresci num meio onde havia muita droga e convivi com toda a degradação e destruição que elas podem causar. Não acho que este acesso deve ser facilitado de forma alguma. Além disso, é ilusório achar que bandido ia ficar sem ter fonte de renda por causa da legalização das drogas. A violência ia se transformar, ia mudar de foco, mas não ia acabar por causa disso. Acredito até que poderia aumentar muito, pois eles teriam que vir mais ao asfalto para conseguir dinheiro e os conflitos seriam bem maiores. Na Holanda dá certo, mas eles têm uma estrutura sócio-cultural completamente diferente do Brasil. Não dá para a gente simplesmente importar esse modelo se não temos a mesma educação para as crianças, o mesmo sistema de saúde, o mesmo sistema de previdência e o mesmo histórico. Não é simples assim.

Revista Util: A ONG rompeu fronteiras e ganhou o mundo. Presta consultoria para diversos países. O Grupo Cultural AfroReggae faz shows e leva oficinas, workshops de percussão, teatro e diversas outras atividades para fora do país. O Brasil mostra a sua cara, e a fisionomia é bela e transformadora. Isso é fato e não se discute. Agora eu pergunto, o nosso modelo é universal? Pode ser aplicado por outros países que vivem também situações de pobreza e violência? Exemplos?

José Júnior: Sim e por isso conseguimos exportar o que chamamos de tecnologia social. O Brasil é um país miscigenado e a sociedade sempre foi mais tolerante com as diferenças simplesmente porque aqui todos somos diferentes. Obviamente existem barreiras e preconceitos, mas o brasileiro teve que aprender quase que naturalmente a lidar com o adverso. Temos uma capacidade de nos comunicar que vai muito além da língua. A linguagem corporal é muito forte. O AfroReggae tem uma técnica de trabalho que é a mesma em qualquer lugar do mundo e pode ser absorvida por qualquer cultura. Se no Brasil atuamos sobretudo com meninos ligados ao tráfico, na Índia capacitamos jovens que são aliciados por terroristas. Na Inglaterra o trabalho é mais voltado para a juventude pobre, da periferia, imigrante. Mas a forma que exercemos o nosso trabalho e a capacitação se dá exatamente do mesmo modo.

Revista Util: O sucesso da Banda AfroReggae tem atraído outros jovens que desejam trilhar o mesmo caminho de sucesso artístico e modelo social. Já temos aí, Banda Makala Música e Dança, Afro Lata, Afro Samba, Afro Mangue, Tribo Negra, Akoni e Kitôto. De que forma essa multiplicação artística contribui para as suas comunidades?

José Júnior: Contribui diretamente, porque gera renda na medida em que esses grupos já têm uma agenda de apresentações e recebem pelos shows que fazem. Além disso, eles ganham auto-estima. Dá para os meninos capacidade de realização de sonhos. Eles viajam para o exterior, conhecem gente, fazem intercâmbios, têm workshops. Hoje eles podem viver da arte, o que é difícil em qualquer lugar do mundo, mas para eles, que são da favela, isso já é uma realidade. Paralelamente, toda a comunidade passa a ter mais acesso à cultura, à informação e à arte.

“Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte,
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!”

Transformação social. Realização de sonhos. O despertar das potencialidades e da auto-estima das camadas mais populares. Lendo a visão, do grupo me vem aquele sentimento – orgulho de ser brasileiro. É como materializar estrofes do hino nacional.

Revista Util: E as nossas leis. A Constituição Brasileira é o desejo mais puro e humano de igualdade social. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que completou maioridade este ano, protege nossos jovens e crianças como o seio materno. Mas está tudo no papel, a realidade é outra. Você acha possível fazer cumprir a lei? É possível materializar o que está escrito?

José Júnior: Lógico que sim. Mas para isso, a corrupção tem que acabar. E o brasileiro tem o hábito de sempre botar a culpa no outro. Só que se esquece de que se existe um policial corrupto é porque ele é corrompido. Mas quem corrompe? É a sociedade civil. Isso foi apenas uma exemplificação, mas o fato é que a corrupção está em todas as esferas da sociedade.

Revista Util: Começamos 2009. Quais são seus projetos para o novo ano?

José Júnior: Muitos. Em março iremos inaugurar o Centro Cultural Wally Salomão em Vigário. É um projeto audacioso, já que será o primeiro grande centro cultural do Rio de Janeiro dentro de uma favela. A idéia é que as pessoas saiam da Zona Sul para irem ver as mostras e eventos que ocorrerão por lá. A programação vai ser "de primeira linha", com curadoria do Hermano Vianna. Também queremos expandir a marca Conexões Urbanas, criando mais pontes para eliminar os guetos em que a sociedade se dividiu.

Revista Util: Um pensamento?
José Júnior: Onde os outros não vêem saída, a gente vê arte.

Revista Util: Uma inspiração?
José Júnior: Nada mais inspirador do que o ser humano.

Revista Util: Um agradecimento?
José Júnior: A todos que contribuem para o AfroReggae, sobretudo nossos patrocinadores institucionais Banco Real, Natura, Petrobras e Vale. À TIM também, que é uma grande parceira em eventos específicos, como o circuito de shows do Conexões Urbanas, o Conexões Funk e o Orilaxé. Também não posso deixar de citar os governos estaduais do Rio e de Minas, que são fortes parceiros.