18 de jun. de 2009

Nós do Morro: arte e cidadania



Alguns projetos brasileiros mostram sua força e seu poder de mudança, assim é com o NÓS DO MORRO, há mais de duas décadas, transformando a vida em arte.
O Grupo, fundado em 1986, no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, entrou em cena para que crianças e jovens da comunidade tivessem acesso à arte e à cultura. Tudo começou com uma grande sacada do jornalista e ator Guti Fraga e de um grupo local que lançaram o Projeto Teatro-Comunidade.
Nessa caminhada, produziram espetáculos no Centro Comunitário do padre austríaco-alemão Hubert Leeb. Dez anos depois, já com alguma bagagem, inicia-se uma nova fase na Escola Municipal Almirante Tamandaré. O grupo conquista o público, recebe prêmios e é reconhecido por toda sociedade.
Nós do Morro entra no século XXI com apoio da Petrobras e com estrutura disciplinar e administrativa. As turmas são divididas por faixa etária, ganham uma grade curricular, se profissionalizam.
Teatro, cinema, canto, dança, música: a soma que multiplica e transforma a realidade de milhares de jovens. Nós do Morro é uma marca sólida, que promove integração social e cultural. Trabalho reconhecido no Brasil e no mundo.


“Em 1986, surgia no meio do Vidigal, um grupo de teatro de ideias na cabeça. Durante essas duas décadas, foram encenadas 75 peças que mudaram a vida não só de quem assistiu, mas principalmente, de quem atuou. Porque subir no palco, para muita gente, foi apenas o primeiro passo para subir na vida”. WBrasil

O grupo Nós do Morro contribui significativamente para o teatro e o cinema brasileiros – contribuição expressa na realização de 19 espetáculos profissionais e seis curtas-metragens - a trupe mostrou, principalmente, a arte de quebrar preconceitos ao transformar o Vidigal em um dos mais importantes polos culturais da cidade do Rio. Em 22 anos, mais de 1.600 crianças, jovens e adultos passaram pelas oficinas do grupo de formação de atores e técnicos e alguns – como

Thiago Martins, Jonatahan Haagensen, Mary Sheyla de Paula, Roberta Rodrigues e Roberta Santiago – já ganharam a TV e as telonas do país.
O diretor Guti Fraga, idealizador da iniciativa, é rápido ao analisar o porquê do sucesso. “Desde o início, nós buscamos a qualidade. Só ela é capaz de quebrar estereótipos e construir algo positivo. Aqui, mais do que viver arte, nós vivemos cidadania, solidariedade e disciplina”, conta ele, que junto com os diretores Luiz Paulo Corrêa e Castro, Zezé Silva e Fred Pinheiro coordenam as atividades das 21 oficinas oferecidas no Casarão, sede de 1.000 m2 que o Nós do Morro mantém na comunidade da Zona Sul carioca. Atualmente, a entidade reúne 30 professores e 480 alunos.

Das conquistas do período, Guti destaca os importantes prêmios - dentre eles, o Shell (categoria Especial), o Mambembe e a Menção Honrosa da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) - a construção do Teatro do Vidigal, com capa

cidade para 80 pessoas, e o intercâmbio com outros países, que possibilitou a coprodução de filmes e a apresentação do Grupo no festival The Complete Works, promovido pela Royal Shakespeare Company, na Inglaterra, em 2006, e no Barbican Center, em 2008.
“Outro ponto muito legal é o caráter multiplicador do nosso trabalho, que hoje atende também à população do interior do estado. Já estamos realizando trabalhos em Saquarema, Itaocara, Japeri e Nova Iguaçu”, enumera Guti, acrescentando que fortificar a atuação nessas cidades, construindo uma sede e um teatro em cada uma delas, é o grande desafio dos próximos anos.

Util: Guti, o sonho já virou realidade ou ainda há muito trabalho pela frente?
Guti Fraga: Acho que o sonho já virou realidade e a realidade quer dizer muito trabalho pela frente. Mas é um privilégio ter muito trabalho pela frente.


Revista Util: Voltando no tempo, lá naquele início, você poderia imaginar essa trajetória de sucesso e realizações?
Guti Fraga: Não, eu nunca poderia imaginar que as coisas caminhariam pela ideia do sucesso. Mas eu me sinto muito realizado em saber, e no meu coração eu tenho certeza disso, que
muitas pessoas encontraram oportunidades que não teriam se não fosse o Nós do Morro. Então, para mim, o grande sucesso do grupo é ter sido o berço, o leque de possibilidades para a realização pessoal e profissional de muita gente. Nosso trabalho sempre foi o de romper estereótipos.

Revista Util: Como toda favela brasileira, o Vidigal também convive com a droga e o tráfico. Você acredita que o projeto consegue tirar o jovem dessa roubada?
Guti Fraga: Não digo que o projeto tira as pessoas desta roubada. Eu diria que o projeto dá uma outra opção, assim como estudar, trabalhar na feira ou de balconista também são caminhos possíveis e seguidos por muitos. São muitas as possibilidade, mas é claro que o Nós do Morro é uma opção - e uma opção próxima - de socialização. A arte tem o poder inimaginável de mudança e é uma escolha social e uma escolha de vida.

Revista Util: Me fala mais do homem Guti Fraga. Você era estudante de medicina, e como sua vida foi direcionada para o teatro? Como aconteceu essa mudança de caminhos? Ou estudava medicina e já era um apaixonado pelas artes?
Guti Fraga: Eu, na verdade, comecei a fazer teatro em Goiás. Éramos um grupo mambembe. A gente tinha uma kombi com a qual rodávamos o interior do país fazendo espetáculos. Quando conseguíamos juntar um dinheirinho, colocávamos gasolina e partíamos para a próxima cidade. Isso fortaleceu muito meu caminho, porque, mesmo muito pobre, eu tive essa oportunidade desde cedo. No entanto, a gente sentia necessidade de ter um curso profissional e isso não existia em Goiás na época. Então eu fui morar na Argentina, fazia medicina pela manhã, agronomia à tarde e teatro à noite. Em um determinado momento, larguei a medicina e a agronomia, voltei para o Brasil e vim morar no Rio. Aqui minha vida mudou. Continuei a fazer teatro e comecei a estudar jornalismo, faculdade que concluí. Hoje continuo sendo como eu sempre me intitulo: um "peão" da arte, com muito prazer, sim senhor!

Revista Util: E qual foi a inspiração para criar o Nós do Morro?
Guti Fraga: Minha inspiração vem muito da experiência de morar no Vidigal, local onde vivo há 33 anos, e da minha vida profissional com a Marília Pêra. Trabalhei com ela de 1981 ao início de 1986, e ela foi a pessoa que abriu meu olhos para a vida, meu coração, minha arte e elevou a minha autoestima. Com a Marília, adquiri conhecimento no trabalho e na vida. Foi o que me fortaleceu. A ideia veio mesmo quando nós viajamos a Nova Iorque e conheci a qualidade dos espetáculos off- -off-Broadway, que tinham características experimentais, não amadoras. Lembrando-me dos talentos que já havia reconhecido no morro, pensei que seria possível fazermos algo semelhante por aqui. Assim que retornei ao Brasil, reuni um grupo para dar início ao projeto. Eu fui um pobre que teve todas as oportunidades na vida e via tantas pessoas talentosas no Vidigal, pessoas com quem eu convivia na comunidade e não tinham
oportunidades. Foi algo que me provocou muito e que me deu coragem de fundar o Nós do Morro. Essa foi minha verdadeira inspiração.

Revista Util: É um homem realizado?
Guti Fraga: Não me sinto um homem realizado. É muito doido isso, porque o que é sentir-se realizado? Sentir-me realizado como? Pois se todo ano lutamos para ter patrocínio, lutamos para ter parcerias com dignidade... Às vezes, você está com uma leva de pessoas e acha que
chegou, que atravessou caminhos, processos de crescimento e momentos da vida. Mas aí você olha para trás e vê que tem uma legião de pessoas que estão vindo com as mesmas necessidades. Então a vida é realmente um eterno recomeçar. E este eterno recomeçar também é um privilégio, temos que estar abertos para as mudanças, para as inovações e para as transformações e vamos caminhando desta forma, buscando o equilíbrio da vida através da arte.

Revista Util: O que falta?
Guti Fraga: Falta, depois de 22 anos, eu tirar férias, falta não ter gastrite por falta de apoio ou patrocínio. Se eu for falar, vão ser muitas coisas, falta estrutura. Fico sempre muito triste nessa época do ano, por exemplo. Todo início de ano somos procurados por muitas pessoas, mais de mil, mas só temos oitenta vagas. Isso realmente me entristece e me dói o coração. Falta espaço físico, falta construir nossa sede oficial, enfim, vamos lutando, pois também temos que agradecer tudo que conquistamos até agora. E este pedaço que conseguimos é maravilhoso.

Revista Util: Qual a mensagem você deixaria para o nosso leitor?
Guti Fraga: Independente de classe social, o ser humano sonha. E temos que acreditar em nossos sonhos, não abrir mão deles por nada. A vida levada através da arte é mais bonita de ser vivida. A vida é uma só, viva intensamente e acredite que só o coletivo tem a força para transformar. Acredite na solidariedade de verdade, respeitando o próximo, não jogar papel no chão e nem guimba de cigarro, enfim, é isso.